segunda-feira, 13 de março de 2017

Goleiro Bruno: Punição vs. Segunda Chance

Apesar de não ter nenhum interesse por futebol eu acompanhei, ainda que de longe, o crime em que o goleiro Bruno Fernandes figura como mandante do assassinato de uma mulher, Eliza Samudio. O que me motivou a escrever sobre o assunto foram os protestos que vêm ocorrendo contra a volta do atleta aos gramados: parte da sociedade não aceita que ele esteja livre e jogando novamente sem ter cumprido uma longa pena e para piorar o lado dele, patrocinadores do time que quer contratá-lo podem rescindir seus contratos caso o jogador passe realmente a defender o Boa Esporte, de MG.

Vamos levantar a seguite questão:

- Até que ponto estamos qualificados para dizer quanto tempo um indivíduo deve ficar preso para pagar por um crime que cometeu, ou ainda, que tipo de critério podemos usar para dizer se ele sequer poderá um dia sair da prisão, ou se é um indivíduo “incorrigível” e incapaz de se reintegrar à sociedade? Quem somos nós para julgar tudo isso?

Quando digo nós, quero dizer a opinião pública, excluindo qualquer pessoa que tinha vínculos familiares e/ou de amizade com a vítima, cujo corpo até hoje não foi encontrado. Porque se enxergarmos a situação do ponto de vista da família de Eliza fica muito mais fácil formular uma opinião e aqui vai a minha, porém de modo geral: para casos de assassinato, estupro, sequestro ou terrorismo sou amplamente à favor da pena de morte. Porém não nos moldes atuais, onde o criminoso passa mais de uma década no corredor da morte e seu julgamento custa grandes fortunas aos cofres públicos. Precisaríamos de uma lei “curta e obscura”, como disse Napoleão Bonaparte sobre como deveria ser a Constituição ideal.

Mas voltando à realidade: nada mais natural que a família e amigos de Eliza estejam descontentes e revoltados com a liberdade concedida ao jogador. Já houve um pedido da revogação da liberdade de Bruno, que foi negado.

Questionando um pouco mais:

- Já que Bruno foi colocado em liberdade, (e provavelmente não vai haver nenhum “vem pra rua” para que ele volte para a cadeia) não é melhor que esteja empregado, se ocupando de algo, sob os holofotes da sociedade e da lei?

Curiosamente, Bruno Fernamdes ficou preso o mesmo tempo que o ator Guilherme de Pádua, responsável pela morte da atriz Daniella Perez no início dos anos 90 - cerca de seis anos. Hoje Guilherme trabalha na área de TI de uma igreja batista da qual também é obreiro. Ele teve mais sorte que Bruno, uma vez que ele saiu da prisão em 1999, logo, não precisou encarar a fúria de milhões de pessoas em redes sociais, inexistentes naquele tempo.

Para ser sincero tentei formar minha própria opinião sobre Bruno Fernandes estar em liberdade e quem sabe, daqui alguns anos milionário outra vez e sendo estrela de algum time da série A. Mas não cheguei a conclusão alguma. Então prefiro não me posicionar, e creio que alguém com um mínimo de sabedoria deve aceitar que certas questões podem simplesmente permanecer pairando no ar, sem solução.

Agora (não pensem que me esqueci!) sobre 'a justiça brasileira' ter libertado o ex-jogador do Flamengo, só encerrando a matéria com uma piada mesmo... Como disse, de maneira triunfante (o bandido) Dominic Toretto na cara (do policial) Luke Hobbs no filme Velozes & Furiosos 5, “THIS, IS BRAZIL”.

pB




segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

#SãoTodosCriminosos

Definitivamente não sou do tipo que se interessa muito por política. O pouco interesse que tenho se refere mais a uma visão histórica, como por exemplo as duas guerras mundiais e ditaduras militares como a que tivemos aqui. Um dos últimos textos que escrevi sobre o assunto foi no final de 2012, e na ocasião eu dizia que os políticos que elegemos no Brasil jamais são devidamente punidos quando praticam corrupção.

- De lá para cá, mudou alguma coisa em relação à isso?

Vejamos: eu duvidava que os “tubarões do PT” um dia veriam o lado de dentro de uma cela, e nisso estava errado, especialmente no caso de José Dirceu, que foi preso cerca de um ano depois da minha matéria, e um tempo depois, com a exceção do “corrupto-mor” Lula (que se não morrer antes de 2018 pode vir a ser o 38° presidente do Brasil), todos os seus comparsas também seriam detidos, porém jamais com todo o rigor da lei caindo devidamente sobre eles, isso é mais do que óbvio: manter estes indivíduos presos requer as mesmas medidas para criminosos como o traficante Marcola que é o lider da facção PCC. São pessoas poderosas, influentes e que sempre têm informações valiosas para barganhar com a justiça, por isso NUNCA SERÃO (justamente o título da matéria à que me referi antes) tratados como criminosos convencionais.

Mudando um pouco de rumo: vamos falar sobre os atos de indignação do povo brasileiro em relação à corrupção. Como são poucas e ineficientes as armas das quais dispomos para lutar! Temos as redes sociais, as grandes manifestações nas ruas... e o que mais? Bom, o indivíduo que está insatisfeito com a administração de sua cidade, estado ou país pode se candidatar e, caso vença ele ou ela pode modificar ou acabar com o que considerar errado, certo? Francamente creio que não... Pessoal, juntando o Mensalão, mais o Petrolão e o escândalo da Oderbrecht, entre vários outros – tudo isso me deixou mais cético que nunca sobre a existência de políticos totalmente honestos, porque não importa se o sujeito “mordeu” 5 mil para comprar um jogo novo de sofá ou se foi 5 milhões para uma mansão, dá na mesma!

Diante dessa nossa aparente impotência perante os bandidos que nos governam atualmente, o que podemos fazer que tenha mais eficácia? Pegar em armas e partir para uma guerra civil?

Não é preciso ser cientista político para saber que não daria certo, principalmente com o brasileiro, que não tem tradição (e provavelmente nem vontade) de ser um povo verdadeiramente guerreiro. E mesmo que a gente arriscasse, ao tentar depôr nossos governantes, nós estaríamos indo contra cães treinados ferozíssimos dispostos a tudo para não largar o osso do poder. Seria um derramamento de sangue sem fim, vejam o que está acontecendo com o povo sírio (mais de 500 mil mortos desde 2011, quando o conflito começou), que decidiu que não queria mais o clã do presidente Bashar Al Assad no comando daquele país... o conflito não tem previsão de acabar, e Assad não faz o menor esboço de que pretende deixar o cargo.

Neste momento, do prefeito da cidade onde moro ao presidente desta república – são todos criminosos, independente do tipo de delito que cometeram. Estou completamente desiludido em relação a qualquer melhora, pois os substitutos destes cedo ou tarde agirão da mesma forma.

“A corrupção no Brasil deixou de ser um grande problema para se tornar mera característica e a culpa é toda nossa, pelo nosso costumeiro comportamento frouxo e falta de pulso firme em cima daqueles que nós escolhemos para nos governar.”

Políticos sabem muito bem disso e continuarão fazendo o que bem querem até o dia em que decidirmos aprender a educar direito as novas gerações, para que estas aprendam a votar, fiscalizar e punir severamente o mínimo abuso de poder por parte de qualquer político!

- Caso isso nunca ocorra estaremos para sempre presos neste 'cul de sac' que conhecemos atualmente como “crise”...

pB


segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

One for the road!

Abri um doc em branco para tentar publicar algo diferente nos últimos dias de 2013, e como andei lendo várias charges sobre metas para o ano que vem, resolvi por fim fazer minha própria lista e compartilhar com vocês, and here it is:

- Continuar longe da televisão;
- Diminuir ainda mais o tempo gasto na Web com eventuais baboseiras;
- Manter o foco nos estudos da língua inglesa, para nunca baixar a proficiência;
- Ler muito mais livros;
- Ao escrever, continuarei com a atitude de nunca me declarar INDIGNADO com coisas que não faço nada para mudar, tal como a situação política do país em que moro atualmente;
- Também, ao escrever seguirei não tomando sistematicamente partidos, coisas do tipo “sou de direita, ou de esquerda”. Pretendo seguir bebendo de todas as fontes e fazer meus próprios juízos de valores.
- Não mudarei o principal diferencial de minhas matérias: não escrevo que o correto é ser carnívoro e que é loucura ser vegetariano, ou vice-versa. Continuarei sendo um pensador e não um merda de um “preacher”;
- Andei me esquecendo de meus amigos. Darei mais atenção e terei mais consideração por aquele pequenino punhado de filhos de uma égua;
- Procurarei fazer novos amigos, colegas escritores se possível, e para isso preciso voltar, ainda que paulatinamente, para um convívio social mais intenso;
- Não fazer fofoca às vezes é algo difícil de evitar, mas estou me tornando “ninja” nisso e seguirei erradicando este hábito repugnante que causa câncer no cérebro;
- E o mais importante: um indivíduo que não vê televisão e que não acompanha acontecimentos da vida dos outros de forma maliciosa e mal intencionada tem muito espaço livre no seu “hard drive”! Por vezes isso se torna um grande problema para mim. Em algumas ocasiões é quase dramático. O remédio? Seguir adquirindo sabedoria que preste, anotando minhas impressões e nunca deixar de ter momentos de lazer. Brilhante ou medíocre, este sou eu e é o que devo fazer, e é o que gosto de fazer.
- Escrever mais, mais e mais...

Isso não é do meu feitio, mas quebrarei um de meus “mandamentos” descritos nesta lista, sendo isto necessário para eu poder concluir o texto.
Aos que leram até aqui:

- PAREM de comprar juízos de valores prontos. Utilizem seus bons sensos e ponderem sobre tudo que tomarem conhecimento com IDENTIDADE PRÓPRIA;
- E PAREM de vender os mesmos, os seus valores. Ao invés disto, SUGIRA, e apenas para quem possa estar interessado em ouvir seus argumentos.

Sinceramente acredito que estas são duas ótimas mudanças para quem deseja abandonar os rebanhos e as massas, adquirindo assim alguma maioridade moral, e por que não, mais PAZ DE ESPÍRITO.

“UM EXCELENTE 2014 PARA TODOS”

Shemhamphorasch,
PEDRO BOTTERO.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Protestar para quê?

Torno a escrever sobre este tema somente por conta dos exaustivos comentários em rodas de conversa e redes sociais. Eu explico minha habitual falta de credibilidade e interesse em tais movimentos:

- Em 34 anos de Brasil, vi poucos protestos onde o povo persistiu e fez valer seus direitos, com destaque os das Diretas Já (1984) e o do impeachment do então presidente Collor (1992). Na contra-mão destes dois cito oportunamente os protestos para tirar o deputado pastor Marco Feliciano da presidência da Comissão de Direitos Humanos – ninguém simplesmente toca mais no assunto, mesmo sendo um grande absurdo um homem que “toma partidos”, que tem visões e valores restritos ocupando uma posição que certamente requer um indivíduo que busque a justiça de uma forma mais genérica e sem pré-conceitos – como dizem os americanos: ...and justice for all.
- Mais pontos contra: a mídia brasileira, que sabe bem que “notícia boa é notícia ruim” mostra estes protestos como uma coisa negativa, dando ênfase para a minoria que pratica atos de vandalismo e também para abusos eventualmente cometidos pela polícia. É só abrir uma nova aba no seu navegador agora mesmo para comprovar o que estou dizendo: “Protesto, vandalismo, violência”.  A causa primária acaba ficando minimizada!
- E claro, ainda creio que parte dos manifestantes não tem nada para fazer, estão saindo às ruas para bancar o politizado, tirar umas fotos e colocar no facebook, e também no meio dessa multidão com certeza há muita gente frustrada e perdedora que se aproveita do momento para externizar tudo isso quebrando e incendiando tudo o que vê pela frente.

Desde as 6 horas desta manhã de terça estou acompanhando estes protestos contra aumentos de tarifas de ônibus, trens e metrô e concluo que estou otimista: tarifa de transporte público é algo que mexe diretamente (e diariamente) com o bolso do povo e as agressões por parte da polícia parecem ter dado ainda mais força ao movimento.

Por fim meus caros, a persistência é a única forma de se conquistar este direito e conseguir alguma redução do valor. E vamos torcer para que não apareça algum escândalo ou protesto novo – pois tendo como exemplo o caso Feliciano, este também pode acabar em vão. Caso contrário, alguém terá que recuar, a população ou o governo, e se há um momento oportuno para provar que “o povo é a maioria” e que “um filho teu não foge à luta” o melhor momento é este.

PB.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Os Direitos Humanos e um “movimento gayzista”


Nunca me dei bem com o termo Direitos Humanos, por ter visto várias vezes indivíduos militantes desta organização defendendo “condições humanas” para assassinos. Ora pois, direitos humanos devem ser reservados evidentemente a humanos direitos e não facínoras deste naipe. Em 2012, quando houve o estupro em um ônibus na Índia, no pior estilo gang rape, lá estavam os tais direitos humanos querendo livrar os criminosos da pena de morte - da qual sou extremamente à favor em casos de assassinato, estupro e sequestros.

Mas quero questionar algo mais recente e talvez mais ameno, a nomeação do deputado federal e pastor evangélico Marco Feliciano (PSC-SP) como presidente da Comissão de Direitos Humanos.
Nesta terça (26) o UOL Notícias publicou:

“Bancada religiosa representa um quinto do Congresso e se une e para conter o avanço de pautas como aborto, drogas, direitos das mulheres e de homossexuais. Postura leva a questionamentos sobre real laicidade do Estado.”

Tracei uma curta biografia do pastor-deputado, e primariamente nada justifica os esforços de grupos sociais para apeá-lo do cargo, mas o que estes grupos e estes manifestantes acreditam, é que o deputado Feliciano vai justamente agir tal como diz o parágrafo acima – que vai protelar, atrasar e vetar assuntos que vão contra o que acreditam e pregam os evangélicos. Se isto acontecer, mesmo sendo incorreto, seria algo óbvio, não? Muito natural, senão vejamos:

Ao conquistarmos o direito de agir, comportar ou ainda se expressar de uma forma considerada controversa, o próximo passo é naturalmente exaltar esta conquista e sim, angariar mais adeptos! Então é previsível que o que imaginam todos os que estão contra o deputado realmente aconteça – principalmente em relação à qualquer benefício a homossexuais. Feliciano pertence ao Partido Social Cristão, e a maioria das vertentes do cristianismo condena o comportamento sexual homogenital.

Afunilando esse assunto tão complexo, seguirei com dois exemplos que corroboram minha teoria: 
- Em qualquer cidade desse país, há sempre um novo templo evangélico surgindo, e os fiéis pertencentes a estas congregações apresentam sempre muita disposição quando o assunto é pregar os ensinamentos que adotaram para suas vidas.
- Quanto a cidadãos homossexuais, bem – descobri que podemos enxergar a situação por uma ótica parecida, graças ao jornalista Olavo de Carvalho, que numa das edições de seu programa True Outspeak faz um alerta contra o que ele chama de “Movimento Gayzista”.
Olavo diz o seguinte, que homossexualismo é uma coisa que sempre existiu e vai existir, mas que este tal movimento "incita" indivíduos a terem semelhante comportamento.
Agora deixemos o jornalista de lado e sua opinião como homem ortodoxo e cristão. Há uma verdade aí: se para um evangélico é bom conviver entre os seus e ver a expansão de sua comunidade, para os que não são heterossexuais também, sem dúvida, e com a legalização do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo (entre outros direitos e garantias que certamente estão por vir) esta população já tende a aumentar espontaneamente, e gostemos disso ou não, devemos no mínimo respeitá-los.

Regra universal, nada de mais: queremos estar entre “os nossos” – e eventual ou inevitavelmente, contra os demais...

pB.


terça-feira, 19 de março de 2013

ÓDIO MORTAL (reissued)



- Harold Walker despertou às três da madrugada. Ainda faltavam quatro horas para se levantar e ir para o trabalho. Mas um súbito acesso de raiva o impediu de continuar dormindo. O motivo era seu patrão, o esquelético senhor Watts. Harold trabalhava para ele há um ano em sua loja de ferragens no centro da cidade, onde era constantemente humilhado, além de trabalhar sozinho em um estabelecimento que exigia no mínimo o triplo de funcionários. Mas Harold não podia abandonar o trabalho, pois era legalmente incapacitado de trabalhar, devido a um acidente que sofreu quando trabalhava com construção civil, o que lhe custou grande parte do movimento de uma das pernas. Harold era casado, tinha dois filhos e morava de aluguel em um cortiço no subúrbio da cidade. Com sua parca aposentadoria do Estado, somada ao salário absurdamente baixo que ganhava na loja, Harold dificilmente conseguia manter a família alimentada e as contas pagas.

O Sr. Watts sabia das dificuldades do pobre Harold, e abusava de sua condição constantemente. E era esse o motivo daquela insônia. Harold, que sempre fora submisso a toda a sorte de insultos e humilhações no trabalho, agora estava a ponto de explodir. Ele se levantou lentamente para não acordar sua jovem esposa, que passava o dia cuidando dos filhos, e foi até a cozinha, arrastando sua perna esquerda, para beber água. Ao abrir a geladeira, a mísera visão de uma garrafa de água, um maço de couves, um recipiente de arroz e uma caixa de leite conseguiu deixá-lo ainda mais irritado.

- Desgraça de vida miserável – murmurou ele, batendo a porta da velha geladeira, desistindo de beber água.

A caminho do quarto, ele se deparou com a esposa, a doce Marie.

- O que faz acordado, querido?
- Não consigo mais pregar o olho, é só isso – respondeu Harold, secamente
- Não é a primeira vez que vejo você vagando pela casa durante a noite. O que está acontecendo? – indagou Marie
- Aquele Watts é um demônio. Eu quero matá-lo! Juro que quero!
- Não diga isso querido, pelo amor de Deus. É graças a esse seu emprego que conseguimos nos sustentar!
- Não importa, não agüento mais! Não suporto mais olhar para aquele homenzinho com cara de caveira, e aquele ar prepotente. E ele vive dizendo que devo agradecer a ele, porque não dão empregos a aleijados.
- Mas é verdade, querido – disse Marie, pegando Harold pelo braço – se você não trabalhasse naquela loja, seria muito mais difícil para nós.
- Você tem razão – concordou ele – Mas tem sido difícil agüentar! Trabalho como um burro de cargas, carregando caixas pesadas cheias de parafusos e ferramentas, sem ninguém para me ajudar. Algumas noites mal consigo dormir por causa da dor na perna acidentada.
- Se Deus quiser, tudo ainda vai melhorar! – disse Marie
- Deus? – indagou Harold – Você e essa sua mania de religião! Acho que Deus só quer é me prejudicar, só pode ser isso! Desde que despenquei daquele maldito andaime, nossa vida virou um inferno!
- Eu sei, querido, mas...
- Mas eu tenho que fazer alguma coisa para mudar isso, Marie. Antes que eu mate aquele homem. Agora voltemos para a cama – disse Harold, enquanto tomava o rumo do quarto.


Joseph Watts era um homem maduro, já no fim da casa dos sessenta. Suas principais características eram o seu autoritarismo e sua avareza. Viúvo e sem filhos, nascido em família tradicional e católica, ele servira por vários anos ao exército, encerrando a carreira com a patente de coronel. Quando se aposentou alguns anos antes do previsto, devido a problemas cardíacos, abrira a loja de ferragens no centro em um antigo salão de propriedade de sua família, que anteriormente era alugado a uma mercearia. Dizia-se pela cidade que Watts tinha muito dinheiro, mas que por medo de assaltos, ou por pura avareza, não tinha sequer um carro, e sempre trajava as mesmas roupas, visivelmente velhas e gastas. Ele mesmo abria sua loja todos os dias às oito da manhã, horário em que Harold geralmente já estava esperando pelo seu odiado patrão. O Sr. Watts levava cada um de seus dias de maneira idêntica e muito regrada, sem nem imaginar que naquele dia abafado aconteceriam fatos bem atípicos.

Pouco antes das sete, Harold se levantou. Sentiu-se absolutamente atormentado e agitado. Tomou um banho rápido e, enquanto se vestia, pensou no que dissera sobre Deus à sua esposa Marie na noite anterior. Foi quando pensou:

- Já que Deus parece querer me prejudicar, quem sabe o Diabo não queira me ajudar?

No mesmo instante, ele se deu conta do pensamento que formulara e se espantou consigo mesmo. Ele nunca tivera qualquer educação religiosa, porém tal conjectura o deixou perplexo. Harold sempre fora uma referencia de homem calmo e sossegado, acostumado com a vida difícil que tantas outras pessoas também têm que levar. E nas últimas semanas ele mudara demais, blasfemando e praguejando o tempo todo devido à sua situação. Harold vestiu a camisa e sentou-se na cama. Começou a pensar em Marie, nos filhos e nas contas que tinha para pagar. Sua família dependia dele. Então ele respirou fundo, levantou-se e saiu para trabalhar, decidido a esquecer do ódio ao Sr. Watts e os pensamentos sombrios, em nome da sobrevivência de sua família.

Quando Harold chegou em frente ao trabalho, a loja ainda estava fechada. Eram dez para as oito. De repente uma das portas se abriu, e ele se viu de frente com a figura que vinha lhe tirando o sono. Com uma magreza fora do comum, um rosto ossudo, de cabelos brancos bem curtos, vestindo camisa xadrez de flanela, calça de veludo e botas surradas, lá estava o Sr. Watts, fitando Harold com um olhar que mesclava desprezo e nojo.

- Bom dia, Sr. Watts! – disse Harold, timidamente
- Vejam só o estado em que se encontra esta calçada! – gritou Watts – aqueles malditos mendigos andaram por aqui novamente! Varra já toda esta sujeira!

Da mesma forma que sentia ódio mortal daquele velho homem, Harold sentia muito medo dele também. Watts tinha um timbre grave e autoritário que às vezes fazia Harold tremer e perder a voz. Por esse motivo, ele apenas disse um seco “sim, senhor” e foi cumprir a ordem dada. Quando amontoou todo o lixo no meio da calçada e se preparava para colocá-lo na lata de ferro, ouviu novamente aquela voz firme, que no mesmo instante o fez derrubar a vassoura que segurava.

- Sr. Harold, acha que lhe pago para brincar com essa vassoura aqui fora o dia todo? Há dois clientes dentro da loja aguardando atendimento! Afinal, você é cego ou aleijado?

Harold estremeceu.

- Mas senhor, como o senhor estava no balcão eu pensei...
- Você não pensou nada! – explodiu Watts – Quem pensa aqui sou eu, meu rapaz! E lembre-se aqui a autoridade vem de cima para baixo, e a responsabilidade de baixo para cima! Agora recolha logo tudo isso.

Harold apanhou do chão a vassoura e a pá de ferro, debaixo dos olhos coruscantes do patrão. Subitamente ele sentiu dentro de si a raiva da noite passada, quando olhou para a pesada pá de lixo. Pensou no estrago que poderia fazer com ela naquele rosto que o observava. Com muita dificuldade, esquivou-se do tentador desejo e terminou seu serviço, indo em seguida atender dois carpinteiros que aguardavam dentro da loja.


Na hora do almoço de Harold, Watts havia ido à Igreja, como fazia todos os dias. Harold estava sentado em um pequeno banco de madeira atrás do balcão de pedra, comendo o seu arroz com couve cozida dentro de uma pequena lata de metal. Ele pousou a lata sobre as pernas, baixou a cabeça e começou a chorar em um tom baixo, sentindo-se a pior criatura sobre a Terra. Sua condição física, a miséria e os maus tratos no trabalho estavam fazendo com que ele desmoronasse por completo. Foi quando um estrondo provocado por um tapa de mãos abertas sobre o balcão deu lhe um susto enorme.

- Senhor Harold, o que eu faço com o senhor? Imagine os meus clientes chegando em meu estabelecimento e se deparando com um funcionário comendo estas coisas asquerosas aqui na frente!

- Mas senhor, eu estava sozinho na loja, alguém poderia entrar e roubar algo, então eu achei melhor...
- Você está sempre me contrariando! – rosnou Watts, indo de encontro a Harold por trás do balcão – Você não tem qualquer disciplina, rapaz! Se tivesse passado pelo exército não seria assim!
- Mas senhor, eu estou quase sempre sozinho aqui, não acho uma boa idéia sair daqui da frente da loja... O senhor poderia contratar alguém para me ajudar, então...

Watts deu uma gargalhada.

- O senhor é um imprestável, Sr. Harold! E está querendo se aproveitar de mim! Justo eu, que fiz a caridade de lhe contratar o senhor, que é um inválido, um inútil! Se não fosse por mim o senhor estaria na rua da amargura, o senhor e sua família!

Harold sentiu um frio lhe percorrer a espinha. O velho militar estava passando dos limites. Ele levantou-se e foi para os fundos da loja, onde ficava o depósito, deixando Watts para trás.

- Volte aqui, seu maldito aleijado! Nunca me deixe falando sozinho!

Enquanto percorria com a dificuldade habitual o estreito corredor, Harold sentiu um estalo eu seu cérebro, que o fez sentir como se houvesse uma enorme pedra de gelo dentro de sua cabeça. Começou a tremer e suar frio. Era o ódio e o medo intercalando-se dentro de sua mente. Sabia que chegara a seu limite. Watts o alcançou, agarrou-o e o prensou contra uma das paredes do depósito, segurando e erguendo-o pelo colarinho.

- Seu merda, quem você está pensando que é? Pela sua audácia, vou demiti-lo agora mesmo e jogá-lo no meio da rua, seu verme!

Nesta hora Harold sentiu medo como nunca em sua vida. Os olhos claros do ex-coronel fuzilando-o com ódio estavam deixando-o desesperado. Mas repentinamente, Harold novamente inchou-se do ódio que já o acompanhava há meses. E pensou naquele homem desprezível, porém admirado por todos da cidade como um homem de bem, que servira à pátria por anos e era assíduo freqüentador da Igreja. Um homem que dizia ter princípios e ser temente a Deus, mas que se comportava como o próprio Satanás. Harold não sabia o que fazer para se livrar dos braços do velho, que apesar da idade e da magreza tinha um bom condicionamento físico. Naquele instante ele pela primeira vez encarou o patrão e cuspiu-lhe no meio dos olhos, quando aproveitou para empurrar Watts e sair correndo em direção da porta. Mas logo atrás, blasfemando e transbordando de ódio, vinha o Sr. Watts.

- Seu rato miserável, vai levar a maior lição de sua vida! – gritou o velho

Ao invés de agarrá-lo por trás, Watts desferiu um forte soco em sua nuca, o que fez Harold despencar de peito no chão, além de bater o nariz com violência contra o piso. Watts pisoteou sua perna esquerda, a que lhe conferia a invalidez, o que fez o empregado urrar de dor.

- Eu vou matá-lo, seu desgraçado, ninguém encosta um dedo sequer no coronel Joseph Watts!

Enquanto Harold continuava gemendo e se debatendo desesperadamente, bateu a perna direita contra uma das estantes de aço, e derrubou sobre si mesmo várias barras de ferro de diversas medidas, que rolaram pelo chão. O velho continuava a chutá-lo e insultá-lo, ficando cada vez mais vermelho de ódio, quando de repente as faces de Watts congelaram. Os golpes cessaram, ele deu alguns passos para trás e apoiou-se contra uma bancada de madeira. Estava ofegante, e mal conseguia pronunciar qualquer palavra.

- Meu Jesus Cristo, meu coração! - disse o velho com dificuldade – Seu imprestável, levante daí e chame uma ambulância, isso tudo é culpa sua! Oh meu Deus, meu Pai, socorro, oh Jesus...

Harold não acreditou no que estava presenciando. Já ouvira o velho Watts falar com conhecidos na loja sobre problemas cardíacos e medicamentos que tomava regularmente. E ali estava ele, debruçado na bancada, ficando mais vermelho e inchado a cada segundo. Harold levantou-se, e apanhou do chão uma das barras que caíram, que media cerca de um metro de comprimento e tinha a espessura pouco maior que a de uma caneta esferográfica. Cego de ódio, apontou a barra no peito do homem e disse:

- Acha que Deus pode salvá-lo, seu velho desgraçado?
- Pelo amor de Deus, tenha piedade, chame uma ambulância! – implorava Watts
- Agora você vai pagar por tudo o que me fez! – dizia Harold, pressionando a ponta da barra com força contra o tórax de Watts – Não adianta chamar por Deus, pois hoje o Diabo veio buscá-lo, e o Diabo sou eu!

Harold espumava de ódio, um tanto fora de si, como se alguma força estranha estivesse por trás daquelas palavras. Ao fitar Harold nos olhos, Watts por um momento esquecera das agulhadas que sentia no coração, pois naquela ora o medo de ser assassinado por um homem que devia lhe odiar mais que tudo na vida era muito pior. Segundos depois, tombou de lado no corredor. Harold observava o patrão friamente, sedento para cravar a barra de ferro no peito do homem. Quando segurou firme a barra com as duas mãos, pronto para dar cabo de Watts, o velho implorou:

- Por favor, eu lhe peço, não faça isso. Eu sou militar, é o meu jeito de lidar com as pessoas, nunca lhe fiz nada por mal, não tenho nada contra você!
Harold o olhava friamente, e replicou:
- Seu miserável, tudo o que me fez passar nesta espelunca não tem perdão! Não tem mais conserto, você me arruinou como homem!

Harold percebeu que aqueles poderiam ser os últimos minutos de vida de Watts, pois a dor que ele sentia no peito parecia estar dilacerando-o completamente.

- O senhor sabe o que é mais incrível? Nem vou precisar sujar minhas mãos com o seu maldito sangue. Você vai morrer aí no chão, todo babado, seu velho nojento, e eu vou ficar aqui assistindo – zombou Harold, largando a barra de ferro e sentando-se sobre o tampo de madeira da bancada.

- Ouça Harold – disse Watts, que naquele momento parecia um tanto aliviado da dor – Aqui, no meu bolso direito – apontou ele – Minhas chaves, uma delas abre minha sala nos fundos, e outra abre a última gaveta da escrivaninha. Há muito dinheiro lá dentro, muito mesmo, parte de minhas economias de toda a vida. É tudo seu, pegue tudo e vá embora! Antes apenas chame uma ambulância, por favor...

Harold não acreditou muito naquela história, mas não tinha nada a perder. Virou o corpo do velho e enfiou a mão em seu bolso, retirando dele um pequeno chaveiro de couro. Em seguida, correu para a sala dos fundos, enquanto Watts continuava a implorar por uma ambulância. Ele jamais tinha entrado naquela sala. O pequeno cômodo era repleto de artefatos militares, tais como bandeiras, flâmulas e medalhas. No meio da sala havia uma antiga escrivaninha de madeira escura com três grandes gavetas. Harold meteu a outra chave na última gaveta, que se abriu com muita dificuldade. Dentro dela havia uma velha maleta de couro marrom. Ao abri-la, Harold quase ficou louco, diante das dezenas de grossos maços de notas de quinhentos euros que ali estavam. Ali deveria ter muito mais do que o pobre Harold ganhara ao longo de seus trinta e três anos. E antes que começassem os devaneios sobre o que poderia fazer com aquela pequena fortuna, ele fechou a maleta, fechou a gaveta à chave e seguiu com a maleta para a fora da sala, sem esquecer de trancá-la.


Voltando ao depósito, Harold encontrou Watts ainda no chão, com as duas mãos sobre o coração, como se estivesse tentando evitar que ele explodisse. Então o velho olhou para cima e viu Harold diante dele, com a maleta marrom debaixo de um dos braços.

- Por favor, filho, aí dentro tem dinheiro suficiente para você e sua família viverem com muito conforto, para o resto da vida de vocês! Não me deixe morrer!

Nesse instante Harold sentiu-se dividido.

- Está certo, Sr. Watts. Vou chamar agora mesmo sua ambulância e vou desaparecer para sempre.

- Deus o abençoe, filho, obrigado! Agora vá depressa, eu não tenho muito tempo...

Harold dirigiu-se para frente da loja, onde se encontrava o telefone. Sem soltar a maleta, ele pegou o telefone e discou o número de emergências. Ao discar o último número, subitamente Harold bateu o telefone, encerrando a ligação. Harold imaginou que, se chamasse socorro para Watts, provavelmente quando se recuperasse ele o acusaria de tê-lo tentado matar e de ter roubado seu tesouro. E todos obviamente acreditariam. Harold sorriu ao imaginar isso, e retornou com a maleta ao depósito.

O velho permanecia na mesma situação, se contorcendo de dor e encharcado de suor.

- O que houve? Eu não o ouvi dizer nada ao telefone! O que pensa que está fazendo?
- Acha que sou tão idiota assim, coronel? Se eu salvá-lo, assim que se sentir melhor, sei que o senhor vai me colocar atrás das grades! Poder para isso não lhe faltará!

Watts sentiu que seu fim estava próximo. Talvez fosse impossível convencer Harold de que pudesse não denunciá-lo e deixá-lo em paz. E Harold parecia realmente decidido.

- Me desculpe, senhor. Essa é minha única chance de ter uma ótima vida com minha família, e não posso correr o risco de ter o senhor no meu encalço!

- Vai ter que confiar em mim, Harold, eu o deixarei em paz! – implorou o velho
- Me desculpe... Lamento... – disse Harold, abaixando-se e colocando o chaveiro de couro de volta no bolso de Watts – Acho que está na hora de o senhor descansar...

Harold afastou se lentamente de Watts, que já não tinha mais forças para contestar a atitude do empregado. Voltou para o balcão e sentou-se no banco onde estivera almoçando minutos antes. Colocou a maleta no colo e a abriu novamente. As grandes notas de quinhentos euros fizeram os pensamentos de Harold irem muito longe, especialmente quando, contando o dinheiro de forma rápida, ele constatou que ali havia cerca de meio milhão... E ele ainda podia ouvir o velho Watts chamar por socorro dentro do depósito, e minutos depois, tudo se silenciou.

Ele pegou sua velha bolsa onde carregava o almoço, esvaziou-a e a encheu com os maços de dinheiro, que couberam com muita dificuldade. Harold estava eufórico e nervoso, pois não via a hora de abandonar tudo aquilo e partir para uma nova vida. Porém, era preciso ter cuidado, pois não poderia simplesmente fugir. Ele voltou ao depósito, e a primeira coisa que viu foi o corpo de Watts estendido no chão, com a boca e olhos abertos, com uma expressão de quem havia visto um fantasma. Verificou o coração e o pulso do homem, sem obter qualquer sinal de vida. Harold não sentiu nada, apenas alívio. Agora não teria mais que suportar o homem que lhe tirara toda a auto-estima. Ele guardou sua velha bolsa com o dinheiro em uma prateleira alta e começou a agir como deveria. Correu até o telefone como se estivesse mesmo desesperado e chamou uma ambulância. Na seqüência, correu até a farmácia, que ficava a uns 40 metros dali, e solicitou a presença do farmacêutico na loja, explicando o ocorrido ao homem. E por último, pegou a caderneta telefônica dentro de uma gaveta no balcão e ligou para um irmão do falecido, que era o único parente que parecia fazer contato com ele...

Cerca de uma hora mais tarde, tudo estava terminado: a ambulância levara o corpo do coronel, e o irmão do velho, que morava não muito longe dali, chegara para tomar conta de tudo. O homem adiantou a Harold que a loja não funcionaria mais, pois ele não tinha a menor condição de tocar o negócio por já possuir outros, e que Harold estava então demitido. Ele simulou certa decepção e, após receber uma pequena quantia em dinheiro como indenização, partiu para casa. E mal sabia o irmão de Watts que Harold já providenciara sua própria indenização, que lhe daria o luxo de se aposentar definitivamente!

Harold dirigiu se ao ponto de ônibus. Ele sentia que a qualquer momento ele mesmo teria um ataque cardíaco se não se acalmasse. Ele não conseguia se controlar, e muito menos parar de pensar nas mudanças que viriam. Toda a família se mudaria para outra cidade, numa bela casa, com todo o conforto, e ele poderia abrir um negócio próprio ou até mesmo viver de renda, e ainda fazer a cara cirurgia que poderia lhe devolver grande parte dos movimentos da perna. Quando finalmente chegou em casa, encontrou a esposa vestindo os dois filhos pequenos que tinham saído do banho. Harold ficou observando-os, em silencio.

- Olá, querido! Porque está em casa tão cedo? Aconteceu alguma coisa?

Harold apenas assentiu com a cabeça com um sim enigmático.

- Não me diga que... Oh não, não me diga que você se desentendeu com o homem e você foi demitido!

Harold repetiu o gesto com a cabeça, deixando escapar uma ponta de riso.

- Meu Deus, e agora, querido? O que vai ser de nós! Você sabe que mal pode trabalhar, e eu tenho que cuidar dos meninos, e agora?

A pobre Marie começou a chorar e se lamentar, quando Harold aproximou-se da esposa, pegou-a pelos braços e disse:

- Calma, querida. Tudo acabou, para sempre. Vamos começar uma vida nova! Vamos embora desta casa horrível, dessa cidade, eu, você e os meninos! Teremos uma linda casa, e eu lhe prometo, nunca mais iremos passar nenhuma necessidade!

Marie afastou-se do marido, incrédula no que acabara de ouvir.

- Você está delirando, homem! Do que você está falando? Nós estamos na miséria como nunca! E você vem falar em “linda casa”? Por acaso você ganhou na loteria?

Harold não se conteve e soltou uma gargalhada, o que provocou mais choro em sua mulher. Ele então se aproximou da mulher e entregou-lhe a velha bolsa onde costumava carregar o almoço.

- Abra – disse Harold, ainda sorridente.

Ao abrir a bolsa e constatar o que havia dentro, Marie ficou ainda mais branca e pálida do que já aparentava ser. Ela apanhou um maço de dinheiro, deixando a bolsa cair no chão involuntariamente. Enquanto olhava as enormes notas esverdeadas, seus pensamentos se embaralhavam, pois era impossível imaginar o que aquela enorme quantia fazia em poder de um homem pobre e aleijado.

- Então é isso? – indagou Marie, enxugando as lágrimas – Ganhou na loteria, querido? Você nunca me contou que apostava nestas coisas... Não posso acreditar!

Quando as faces de Maria se modificaram, e ela começava a vibrar com a suposta novidade, Harold a interrompeu.

- Querida, não foi bem assim, eu nunca apostei em loterias, você sabe que eu não teria dinheiro sobrando para isso.

E Harold iniciou o relato do que realmente ocorrera.
Ao terminar de ouvir a história do marido, Marie permaneceu calada.

- Querida, diga alguma coisa! Eu sei que não foi a melhor saída para nós, mas era uma oportunidade única!

- Oportunidade? Harold, você deixou o homem morrer e roubou o dinheiro dele! Você chama isso de oportunidade? Querido, você cometeu um crime!

Marie começou a chorar histericamente, enquanto empurrava o marido, que tentava contê-la, segurando-a.

- Tire estas mãos de mim! – berrou Marie – Deus vai te castigar, homem! Esse dinheiro só vai nos trazer desgraça!
- Não diga uma bobagem dessas – disse Harold – esse dinheiro não é desgraça, é a salvação! Não seja hipócrita, a verdade é que, sem este dinheiro, vamos ser uma família de miseráveis para sempre!
- Não me importo de ser miserável – disse Marie, ainda mais nervosa – O que eu não quero é queimar no Inferno por me aproveitar dessa situação! Harold, pense nisso! O homem morreu porque você negou ajuda a ele e depois o roubou!

- Pare com isso, mulher! Mortos não podem gastar! – zombou Harold
- Isso não é o mais grave! Você sabe, só Deus pode tirar a vida de uma pessoa!

Harold explodiu com a mulher, diante de toda aquela discórdia.

- Pare já com isso, Marie! Chega! Não agüento mais essa sua mania de morrer de medo de Deus! Vejo você lendo a Bíblia e rezando toda noite, e o que Deus tem feito por nós? Abra essa mente mulher, e veja que, se Deus existe e gosta de nós, ele hoje nos mandou um presente! Tirou aquele velho ordinário da minha vida, e nos deu condições para viver dignamente! Vamos arrumar nossas coisas e ir embora, amanhã cedo não quero mais estar aqui! Teremos de tudo, casa, um carro, nossos filhos irão para boas escolas...

Marie afastou-se do marido, agora com um semblante frio e decidido.

- Não conte com isso, Harold. Nem eu nem meus filhos iremos desfrutar desse dinheiro sujo, esse dinheiro do demônio! Prefiro ser pobre sim, porém digna, digna de ter paz na eternidade!
- Eternidade? – disse Harold – Sua eternidade será a pobreza e a miséria se não aproveitar esta chance! Essa coisa de religião estragou sua cabeça mesmo, eu sempre disse que essa sua dedicação a essas coisas não ia dar certo! Você está cega!
- Pois bem – disse Marie – Vou lhe dizer uma coisa. Ou você se livra deste maldito dinheiro, ou eu e meus filhos iremos embora hoje mesmo, e você nunca mais nos verá! E você terá que fazer penitencia, muita penitencia, pelo ato horrível que você cometeu!

Harold viu que a coisa estava séria, mas de forma nenhuma pensava em ceder ao pedido da mulher. Ele tinha certeza que se fizesse tudo aquilo, agora sem emprego, a família terminaria na sarjeta como verdadeiros mendigos.

- Tem certeza do que está dizendo, Marie? Não quer pensar melhor sobre isso?
- Não, querido, já me decidi. Se você quiser viver com este dinheiro, nós terminamos aqui. Eu vou pegar os meninos e vou para a casa da minha mãe. Eu e as crianças amamos você, mas se você optar por este caminho do mal, nós vamos nos separar.

Harold viu que não tinha mais saída, teria que optar por manter a família unida, porém com ainda mais dificuldades, ou seguir sozinho numa vida nova e confortável. Era hora de decidir...


- Marie – disse ele calmamente – não sei se vou me arrepender mais tarde, mas vou fazer o que acho certo. Se é assim que você quer, eu vou embora com este dinheiro. Vou refazer minha vida, pois eu não suporto mais a minha condição e se possível, amanhã quero estar internado numa clínica operando esta perna... Quem sabe com o tempo você não reconsidera a sua decisão e vem com as crianças para perto de mim. Eu vou estar sempre esperando por vocês! Nunca os esquecerei!

Harold enfiou a mão no bolso da camisa, de onde tirou o dinheiro que o irmão de Watts lhe dera e entregou a esposa.

- Esta é minha indenização pela demissão, o irmão do velho fez questão de pagar – disse Harold – Aceite ao menos este dinheiro, vocês têm direito a ele, será o suficiente para vocês por um mês ou dois.

Marie hesitou, mais sabia que não podia deixar os filhos morrerem de fome, e acabou aceitando o dinheiro.

Harold foi até o velho sofá, onde estavam seus dois pequenos filhos, que assistiam a discussão dos pais sem entenderem nada. Ao olhar para os dois pequeninos, Harold sentiu o coração partir-se e chorou dolorosamente, porque sabia que ficaria algum tempo sem vê-los. Juntou os dois e os abraçou, dizendo que os amaria para sempre. Depois se levantou, com os olhos marejados, e abraçou ternamente a esposa.

- Eu te amo, querida, amo todos vocês! Mas hoje, algo dentro de mim diz que é assim que tem que ser. Tenho que pensar em mim!

Depois do longo abraço, mais do que depressa, Harold pegou sua bolsa, fechou-a, e com a voz trêmula disse um triste adeus a sua família. E então saiu pela porta da casa sem dizer mais nada, apenas com a roupa do corpo e sua fortuna debaixo do braço.


EPÍLOGO

Exatamente três meses após a morte do coronel Watts, Harold achou que era a hora de procurar sua família e tentar convencer a mulher a juntar-se a ele. Ele não agüentava mais aquela distância, mesmo tendo agora uma vida extremamente confortável. Com os exatos seiscentos e dez mil euros que levara de Watts, ele comprou um confortável apartamento em uma cidade próxima a qual ele vivia com a família, com um mobília toda nova, e também fizera a operação para diminuir significativamente sua invalidez. Agora vestia roupas novas e elegantes, e estava com ótima aparência, e naquele momento ele percorria uma estreita rodovia a caminho de sua antiga casa, a bordo de um belo automóvel Lincoln prateado. E Harold ainda tinha uma razoável quantia em dinheiro aplicada no banco, o que lhe garantiria aquele padrão de vida até o fim dos seus dias.

Ao estacionar o carro em frente sua antiga casa, tudo parecia igual. Ele desceu do carro, apoiando-se em uma elegante bengala envernizada, devido à recente cirurgia na perna. Perguntou sobre Marie e as crianças, e a atual moradora não soube informar o paradeiro deles. Bateu à porta do vizinho, que disse ter visto a família de Harold se mudar a algum tempo.

- Devem ter ido para a casa de minha sogra – pensou ele

Voltou para o carro e seguiu até o cortiço onde morava sua sogra. Ele chamou pela mulher, porém uma pessoa estranha veio atendê-lo. Uma jovem moça lhe explicou que a família que ali morava havia se mudado ha algumas semanas, sem deixar endereço.

- A senhora tem certeza que não disseram para onde foram? – perguntou Harold
- Não senhor – respondeu a moça – Mas acho que tenho uma coisa para o senhor.
- Para mim? – indagou ele
- Sim, por acaso o senhor é marido da moça mais nova?
- Sim, sou eu, meu nome é Harold!
- Então é o senhor mesmo – confirmou ela – ela lhe deixou uma carta. Um momento, vou trazer para o senhor.

Harold começou a ficar preocupado. Para onde teriam ido? A mãe de Marie também era pobre, e doente. Sem dinheiro, não poderiam ter ido longe. Harold encostou-se no pára-lama de seu Lincoln enquanto aguardava a moça com a carta. Até que ela retornou, e lhe entregou um simples envelope branco, escrito apenas em um dos lados: “de Marie para Harold”. Ele tirou os óculos escuros e os guardou no bolso do paletó, abriu o envelope e começou a ler a carta:

“Querido Harold, cedo ou tarde sei que você virá nos procurar e tentar nos levar com você. Espero que você entenda, mas nunca mudarei de idéia. Meus princípios não me permitem viver ao lado de um homem que fez o que você fez, então continuarei levando minha vida como sempre. Não se preocupe conosco, estamos indo para um lugar seguro e tranqüilo. A mamãe tomará conta dos pequenos enquanto eu estiver trabalhando. Acredito que conseguiremos nos manter com alguma dignidade. Penso muito em você, e todas as noites as crianças choram, perguntando de você e sentido a sua falta. Você vai fazer muita, muita falta mesmo! Uma pena ter escolhido este caminho... Espero que mesmo assim, consiga ser feliz.”

Com amor,

Marie.”

Harold agradeceu a moça, despediu-se e entrou em seu carro. Acomodou-se no banco e respirou fundo. Não sabia direito o que pensar. Ele perdera a família, porém estava levando a vida que sempre quis. Em seguida teve uma súbita e dolorosa crise de choro. Minutos depois, com a mesma intensidade que começara, seu pranto cessou completamente. Para Harold, foi como se instantaneamente aquelas lágrimas vertidas tivessem lavado sua alma e livrado sua consciência e coração de qualquer remorso. Pensou que o tempo que passou sendo humilhado por Watts o deixara daquela forma, com o coração de pedra, e sem qualquer remorso. Então Harold sentiu novamente saudades de sua família, mas nada que o abalasse profundamente. Não mais. Ele estava simplesmente encantado com sua nova vida. Nada podia deprimi-lo agora. Harold olhou-se no espelho retrovisor, e vislumbrou sua ótima aparência. Olhou para o interior do carro, todo forrado em couro e cheirando a novo. Abriu sua carteira, e ali viu seus cartões de crédito, talão de cheques e muito dinheiro. Depois, visualizou seu belo apartamento. Então ele apenas sorriu, pensando em quão tola sua esposa estava sendo em abdicar do conforto em função de uma vida carola. Em seguida ligou o carro e partiu.

Ao passar em frente à igreja, no centro da cidade, Harold viu diversos homens usando fardas. Foi então que se lembrou novamente que naquele dia fazia exatamente três meses que Watts havia morrido, fato que modificou totalmente seu destino.
- Devem estar realizando missas mensalmente para o velho – pensou ele

Harold estacionou em frente à igreja, baixou o vidro escuro do carro e observou o movimento. Ele viu os velhos militares se cumprimentando e entre eles pôde reconhecer o irmão do coronel. Harold fez um balanço de tudo o que aconteceu naqueles últimos meses e apesar de tudo, sentiu-se extremamente satisfeito. E pensou na devoção de Marie e do coronel a Deus, concluindo que os dois não passavam de tolos.

Uma continua na miséria – pensou – e o outro a sete palmos debaixo da terra, ou no Inferno – grande Deus, o deles!

Harold deu uma gostosa risada, como se tivesse contado uma anedota, ainda que com humor negro, para si mesmo. Então se espreguiçou, colocou seus óculos escuros, afivelou o cinto de segurança, ligou o rádio e partiu, a toda velocidade, para sua vida nova, onde até aquele momento Deus não parecia querer atrapalhá-lo, ou muito pelo contrário... Talvez Deus tinha sim, grandes planos para ele... Somente para ele...


FIM



*Texto originalmente publicado em 19/07/2010

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Amar é pisotear o próximo!



Nesta virada de ano voltou às manchetes uma notícia felizmente não muito freqüente: mais um evento onde, em minha opinião inexplicavelmente, centenas de pessoas são pisoteadas até a morte por milhares de outras!
O incidente que ocorreu em Abidijan, na Costa do Marfim, foi durante uma comemoração, a passagem de ano, ironicamente chamada Confraternização Universal – isso para mim é tão surreal e irracional que quase desisti desta matéria. Até a conclusão deste texto, o body count registrava 61 vítimas, a maioria crianças e mulheres. Ainda segundo a BBC, no mesmo estádio em 2009, depois de uma partida de futebol, 19 pessoas tiveram o mesmo destino.

Meus caros, a questão que levanto é: como brutalidades assim podem ocorrer em eventos com caráter comemorativo, recreativo ou espiritual?
Muito bem, vamos às estatísticas: a maioria dos casos ocorreu em eventos esportivos ou religiosos, momentos que supostamente devem proporcionar ao indivíduo diversão e algum conforto espiritual. As peregrinações religiosas no Oriente Médio lideram a lista – em uma delas em 1990, nada menos que 1426 participantes perderam suas vidas sob solas de sapatos de outros entre as cidades de Mecca e Mina.
Jogos de futebol também trazem números trágicos, e neste caso o incidente mais fatal foi em Moscou na então URSS em 1982, onde se acredita que 340 pessoas morreram amontoadas, tentando passar por cima umas das outras dentro de um túnel congelado nas imediações do estádio.
Em nosso país, tivemos algo semelhante mas em escala bem menor: em 2006 um show em São Paulo de algo que chamavam de "Rebelde" gerou um grande tumulto que resultou na morte de três crianças pisoteadas pelos demais "fãs".

Na língua portuguesa não há uma palavra definida para este acontecimento, mas em inglês há: “stampede”. Só que o termo é mais utilizado no que chamamos aqui de “estouro”, quando por exemplo uma grande quantidade de gado se desloca de forma violenta e descontrolada. Enfim, para um “estouro de boiada” ou de humanos, em inglês usamos o mesmo termo.
E concluo exatamente isto, não há muita diferença. Muitos indivíduos espiritualizados afirmam que o Homem é uma criação divina, que faz parte de “algo maior”, e que a “lei” é amar o próximo como a si mesmo. Situações lamentáveis como estas que tive o desprazer de relembrar mostram que o ser humano não está acima de coisa alguma, e digo mais, duvido que em estouros de gado morram touros ou vacas pisoteados covardemente desta forma!
Encerro este texto com algo mais estatístico e realista do que propriamente meu ponto de vista, ainda que ambos coincidam:

No caso do futebol, a primeira coisa que muitos torcedores parecem ter em mente, antes de sua vitória e alegria, é ver seu oponente, neste caso fazendo legítimo papel de inimigo, derrotado não só no campo, mas nas ruas também!
E as religiões, estas raramente fazem algo que vá além de limitar e atrofiar a mente das pessoas. Há quem tire muito bom proveito delas mantendo sua saúde mental e alcançando a felicidade, sem dúvida alguma. Mas a História nos mostra que o objetivo de quase todas as crenças é basicamente semear ódio, discórdia ou repulsa contra os que crêem em algo diferente. E a idéia de pensar no próximo como em si mesmo é por demais estapafúrdia e hipócrita, a ponto de ser incessantemente lembrada, pronunciada, copiada e colada nos facebooks da vida, mas na prática – bem, na prática é assim: 

"Passamos por cima de um na porta do banco, de outro na vaga do estacionamento, de três ou quatro em um corredor de mercado, de 340 no jogo de futebol e de quase 1500 na peregrinação religiosa"

Divino, nést pas? 

PEDRO BOTTERO.

* Dedico este trabalho à memória imortal do grande Philip Coppens (25.01.1971 - 30.12.2012). Rest in peace, friend.